As narrativas e histórias demonstram a interação criativa e dialética entre o ser humano e o meio ambiente. Através dessa interação, os indivíduos utilizam sua subjetividade para modificar e interpretar o mundo ao seu redor. A capacidade de reflexão é fundamental para a ação humana, permitindo que as pessoas, ao transformar seu entorno, construam uma compreensão sobre a sociedade e suas transformações ao longo do tempo.
Os povos indígenas, como os Javaé, possuem uma história dinâmica e uma consciência histórica que antecedem o contato com os colonizadores. O que a ciência ocidental chama de mitologia indígena, apesar de parecer contraditória a olhos externos, é entendida pelos próprios povos como parte de uma totalidade coerente. No caso dos Javaé, suas narrativas revelam uma concepção da sociedade e da realidade que abrange uma teoria da prática, conectando a historicidade à dialética entre totalidade e ação, continuidade e mudança, tradição e inovação.
A visão de mundo dos Javaé é holística, cada parte está conectada ao todo, refletindo princípios de uma ordem unificada. Suas narrativas, chamadas "lahi ijyky", são interpretações sobre tempos antigos, diferindo do conceito ocidental de mito, que muitas vezes é associado à ilusão. Para os Javaé, todos os aspectos da vida se integram em uma totalidade coerente, no qual opostos, como interior e exterior, identidade e alteridade, continuidade e transformação, estão em constante interação.
A procriação, para os Javaé, é entendida como um modelo de criação e incorporação da alteridade, sendo fundamental para a reprodução tanto dos corpos quanto da própria sociedade. Esse movimento entre continuidade e mudança, estrutura e movimento, compõe a constituição da sociedade Javaé. A ideia de "comunidade de substância" sugere que a construção histórica da sociedade é uma síntese entre os princípios masculino e feminino, que se integram e se transformam mutuamente.
Um exemplo dessa dialética é a pesquisa de Ruruca Javaé (2015), que descreve a organização tradicional da caça entre os Javaé. O processo de caça envolve o aviso à comunidade, a organização coletiva e a partilha da carne, elementos que reforçam os laços comunitários e a identidade coletiva. Esse processo contrasta com práticas mais recentes, onde a carne é vendida por dinheiro, refletindo as mudanças históricas influenciadas tanto por fatores externos, como o capitalismo, quanto por dinâmicas internas, como as transformações entre gerações.
Quando alguém vai ao mato e se encontrar o porco de queixada tem que avisar a comunidade. Então o organizador faz uma reunião com a comunidade e depois vão para o mato para atacar o porco de queixada, com calma e sem pressa. Aquele quem tem carreira (que sabe correr mais) mata com a borduna e os outros matam com o arco e flecha. Quem não consegue matar nenhum, recebe uma parte dos outros, que tem que dar uma parte da caça para ele, porque ele tem família para sustentar. Por isso os outros dão uma parte ou porco de queixada inteiro para ele.
Os nossos antepassados viviam assim como socialismo, agora as novas gerações não tem organizador de caça, por isso, que não funciona corretamente a caça. Hoje em dia as novas gerações não dão um pedaço de carne de porco de queixada nem outra de carne de caça. Ao contrário do que ocorria antes, agora quando alguém dá um pedaço de carne para outro é em troca de dinheiro, como funciona no capitalismo. Algumas comunidades ainda não deixaram sua cultura, nelas quando alguém quer caçar têm que avisar o organizador de caça e juntar a comunidade para ter uma caça tradicional, eles matam os animais que servem para a sustentabilidade das comunidades indígenas do povo Javaé. (Ruruca Javaé, 2015, p. 87).
A pesquisa produzida por Hélio Tekuala Javaé, Werehatxiari W. Javaé, Ruruca Javaé e Valdemir Filho Texibà Javaé (2016) detalha práticas culturais e rituais que exemplificam a criação da cultura e sociedade através de conceitos e práticas relacionadas ao corpo. A preparação dos homens para a vida adulta, que inclui rituais de purificação e fortalecimento, é vista como uma forma de mediação entre opostos e ilustra a importância do corpo na cultura Javaé.
Primeiro trabalho dos Saberes Indígenas na escola Indígena Tainá foi feito através da pesquisa com ancião Waixawala Javaé, que no mês de agosto de 2014 foi realizada entrevista sobre o ciclo da vida do povo (Iny) Javaé. Explicou que desde crianças as atividades masculina e feminina são ensinadas, ou seja, treinado diferente um do outro, porque as atividades masculinas são mais difíceis, como por exemplo: caçar com arco e flecha no mato; e as atividade femininas são mais fáceis, porque é só na casa ou na aldeia, por exemplo: separar murici maduro em cima da esteira. Estes são alguns exemplos de trabalho […].
O homem tem que fazer o vômito de tarde mais ou menos às 17h30min da tarde e depois faz o jejum uma noite e um dia e meio para permanecer leve e também não permanecer pesado ou preguiçoso ao mesmo tempo faz o risco nas pernas e nos braços e passa pimenta de macaco e outros, quando o homem faz o risco para retirar o sangue contaminado que acontece através da mulher e depois faz passar a pimenta no ânus e dói muito, mas o homem tem que permanecer dentro da água somente uma noite para permanecer forte e resistente.
A preparação do homem serve para todos, não cansa muito e também faz limpeza na garganta para a voz sair saudável, sem perturbação da voz e também serve para fazer a carreira, ele se sente como leve e mata as aves ou animais com a carreira e também serve para as lutas corporais, principalmente para o trabalho, porque através do trabalho as pessoas sustentam suas famílias, por isso os nossos antepassados se prepararam muito, as novas gerações estão deixando a sua cultura tradicional nenhum fazia no tempo passado, por causa disso as novas gerações permanecem perdidas e também ficam pesados ou preguiçosos e comem muito e ficam crescendo a barriga e também não pode beber muita água (2015, p. 138-140).
A interação entre tradição e inovação, continuidade e adaptação, evidenciado nos rituais, reflete a complexidade e a dinâmica da cultura Javaé. A perspectiva dialética oferece uma interpretação rica das culturas indígenas, mostrando que elementos aparentemente contraditórios podem coexistir e interagir. A interpretação Javaé da história, revela-se uma ferramenta valiosa para entender a resiliência e a adaptabilidade das culturas indígenas diante das transformações contemporâneas.
A concepção deste povo sobre as relações entre unidades significativas da realidade os coloca dentro da discussão ameríndia sobre a receptividade à alteridade, em que o externo está em constante interação com interno. Eles veem os fragmentos da narrativas como "partes relacionais”, que só fazem sentido dentro de um todo maior, representado pelos conceitos de kyrè e kèrè. Para os Javaé, a relacionalidade das coisas é crucial, entendendo cada unidade como parte de um contexto mais amplo.
O conceito de kyrè significa "pedaço de outro", indicando que todas as partes existem em relação ao todo. De forma similar, kèrè ("metade") é visto como complementar. O todo é continuamente recriado, assim como narrativas e músicas, que são dinâmicos e absorvem novos elementos. A pesquisa de Samuel Saburua Javaé (2017) no Projeto Extraescolar, "Hetohoky: a grande festa do povo Javaé", aponta esses aspectos fundamentais:
Este trabalho apresenta uma grande festa ritual Hetohoky do povo Iny Javaé, que representa a passagem do menino de criança para adolescente, sendo considerado também adulto e já torna responsável por ele mesmo pode até casar. Esses meninos quando passam na fase da adolescência são educados pelos espíritos dos bichos são: aves, animais e peixes (worosy-worosy). Esses espíritos vem para a festa Hetohoky surgindo do fundo da água e da mata para educar os adolescentes, são chamados de “jyre”. Quando o menino recebe nome de jyre fica autorizado a ir na casa do aruanã, onde os homens se reúnem, contam histórias dos antepassados, mitos, músicas e outros que são contados somente para os jyre. As mulheres que entram na casa do aruanã somente ‘borotyrè’, quer dizer madrinha dos jyre e se torna worosy-wetxu, pode ser avó ou tia do jyre, antigamente fazia uma mulher de idade, e hoje em dia não existe idade certa, segundo explicação dos conhecedores (as) da cultura Iny Javaé, a imagem abaixo mostra um exemplo das mulheres de borotyrè para se tornar woroy-wetxu, acompanhando os jyre e pajé e todo enfeitadas de palhas são chamado de lateni, guardiões dos jyre e também fazem educação dos adolescentes ou jyre.
A dupla do lateni vêm do fundo da água, da terra ou do céu e também podem ser do mal ou do bem, segundo explicações dos pajés. Worosy-wetxu também é educada por espíritos dos bichos (worosy-worosy) mesmo processo dos jyre, para não contar o que ela aprendeu dentro na casa do aruanã.
[…] Todos eles que estão enfeitados de penas, pintura corporal e tira de palha de babaçu na cabeça são considerados espíritos ‘worosy’. Esse são um dos deuses dos Iny Javaé, sempre os Iny pedi para proteger do mal, na caçada, na pescaria e na viagem, sempre eles estão acompanhando os Iny. Os espíritos que ficam representado por Iny que é o worosy, existem muito segredos deles dentro do Hetohoky, somente os jyre mahadu que aprendem. Não é permitido ensinar fora da casa dos homens (casa do aruanã ou no Hetohoky) sem ser jyre ou mulheres não aprendem, faz parte de um segredo da festa ritual do Hetohoky, é uma grande festa ritual sagrado do povo Iny Javaé. Muitas pessoas morreram por motivo desse ritual, que infringiram a norma do Hetohoky, isso ocorreu na aldeia Iny Webohona, muitos séculos atrás na antiga aldeia do povo Javaé Iny Webohona (Boto Velho), informações segundo os conhecedores da história Javaé.
Como hoje nós estamos no mundo capitalista e tecnológico, a possibilidade de mudança nas normas das brincadeiras tradicionais nos deixam preocupados, principalmente os educadores anciões, pajé e outros que são responsáveis pelas festas tradicionais para que não desapareça o ritual, porque a nova geração de hoje é atraída pelo modo de vida capitalista, por isso precisamos ensinar a falar em cima do modo tradicional, para não extinguir o ritual (2017, p. 119-121).
A educação transmitida pelos espíritos dos animais ilustra a integração dos conhecimentos corporais e a sabedoria da natureza, destacando a relação íntima com o ambiente, territorialidade e narrativas ancestrais transmitidas oralmente. Em contraste com a visão tori (não indígena) que separa humanidade e racionalidade do natural e espiritual – fragmenta o conhecimento em disciplinas –, a abordagem Javaé integra esses elementos em uma totalidade coerente.
Já a participação das mulheres na casa do Aruanã reflete uma interpretação Javaé da história. Situando o Hetohoky na contemporaneidade, a interação entre um elemento "interno" e "fixo" – a tradição masculina – e um fator "externo" – a alteridade feminina – exemplifica a transformação da cultura Javaé. A dinâmica cria algo novo sem romper com o passado, incorporando novas interações e contornos contemporâneos.
A respeito da dimensão de “tempo”, para os Javaé não existe uma palavra para designar esta expressão na língua Iny Ribè. O termo utilizado, bedè, refere-se a "espaço"/"lugar". Isso significa que as narrativas são vividas e percebidas em conexão com os lugares onde habitam e as atividades que realizam em seu território.
O bedè reflete uma visão em que a vivência e as narrativas estão ligadas aos ciclos naturais, ao fluxo do rio, à vida dos seres humanos e aos seres espirituais que compartilham o mesmo espaço. Assim, o tempo, como uma abstração cronológica, tal como elaborado pela compreensão ocidental, não existe. Em vez disso, as histórias são compreendidas por meio dos processos naturais e das mudanças que ocorrem no meio ambiente, como a passagem das estações, a migração de animais e a dinâmica das águas.
Além disso, a cosmologia Javaé valoriza o lugar como organizador de suas narrativas. Em vez de se basearem em uma linha temporal definida, as histórias e memórias Javaé são formuladas a partir de espaços específicos, como lagos, rios e áreas de caça da Ilha do Bananal, que carregam significados históricos, culturais e espirituais. O rio Javaé, por exemplo, não é apenas um espaço geográfico, mas também uma entidade viva e espiritual que molda o ciclo de vida e os rituais, como a celebração do Aruanã.
Na prática, essa percepção é observada através de fenômenos naturais, como as fases da lua, as estações das chuvas e o ciclo de vida dos animais. Esse "calendário ecológico" regula suas atividades, desde a pesca até os rituais espirituais e festividades. Mesmo com a imposição de calendários ocidentais, os Javaé mantêm suas próprias formas de situar suas narrativas a partir do lugar, baseadas na observação da natureza, das estrelas e dos ciclos sazonais.
Portanto, a maneira Javaé de interpretar o devir da história se dá a partir do lugar, ou bedè em Iny, como um fluxo constante de interações entre o ser humano, o ambiente e os seres espirituais, sendo inseparável do lugar e dos processos de vida que o cercam. O termo bedè tem um significado complexo e multifacetado, representando uma perspectiva singular sobre a relação entre espaço e existência.