Tempo e História Javaé

Autonomia e protagonismo indígena como estratégia didática

As pesquisas realizadas pelos alunos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena mostram-se como ferramentas eficazes e originais para a revitalização e valorização da presença e contribuição dos povos indígenas na história do Brasil. Permite considerar uma história indígena que abranja não apenas a historiografia, mesmo a da Nova História Indígena, mas também o protagonismo dos conhecimentos indígenas, suas próprias visões de história e tempo.

Para essa análise, vamos examinar os Projetos Extraescolares documentados pelos professores do Comitê Javaé, publicados pelo Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, incluindo a Revista Articulando. A análise será associada a pesquisas no campo historiográfico e outras disciplinas, como a antropologia. Os projetos, desenvolvidos pelos estudantes indígenas Javaé do NTFSI, abordam temas como ciclo de vida, laços de parentesco, artesanato, plantas medicinais, danças, caça, pesca e músicas tradicionais do povo Javaé.

Analisamos quinze Projetos Extraescolares realizados nas escolas indígenas das aldeias Twiri, Wari Wari, Barreira Branca, Boto Velho, Barra do Rio Verde e São João, todas na Ilha do Bananal, Tocantins. Os projetos ilustram como as concepções de história para o povo Bero Biawa Mahãdu (Javaé) estão ligadas à corporeidade, ao lugar e a uma série de conhecimentos interconectados que envolvem ancestralidade, oralidade e territorialidade. Os extraescolares demonstram experiências genuínas da consciência histórica Javaé, como exemplificado nos estudos de Nazareno (2017), Rodrigues (2018).

Os Projetos Extraescolares foram elaborados em diálogo com a comunidade, atendendo às demandas atuais do povo. Reuniões são realizadas com os moradores das aldeias, incluindo anciãos e lideranças, para discutir a seleção dos temas de pesquisa com base na relevância local. Um exemplo dessa participação comunitária é a pesquisa de Ioló Javaé (2015) na aldeia Wari-Wari sobre "A importância e criação do pirarucu para o povo Javaé".

No dia 06 de Fevereiro 2010, nos reunimos na Escola Indígena Sanawê, para discutir qual era o interesse da comunidade sobre a escolha do tema do meu projeto extraescolar. Aproveitei a oportunidade para falar do meu projeto. Expliquei duas vezes para o povo entender, citei uma pessoa que fez pesquisa na aldeia. Eu disse que estava começando o trabalho de pesquisa para me formar no curso da Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Goiás – UFG. Deixando claro que tinha escolhido como tema a criação de Pirarucu que está em vias de extinção, portanto a maioria concordou com a minha preocupação. Observei que o nosso povo estava capturando sem ter dó e sem pensar nas consequências que tais ações teriam no futuro para os mais novos.
O cacique, o senhor Hatxiaku Javaé, esclareceu mais explicações sobre a criação de Pirarucu, para a comunidade e como a maioria das lideranças estava presentes aceitaram fazer pesquisas e a palavra do cacique, que era pra eu acreditar e não desistir do estudo e pesquisar que serviria no futuro para a comunidade (2015, p. 98-99).

O caráter comunitário dessas pesquisas demonstra a contextualização dos saberes ancestrais e a relação com os territórios e comunidades, exemplifica a estratégia do Projeto Pedagógico de Curso da Licenciatura Intercultural da UFG em confrontar a lógica segmentada do pensamento ocidental. O propósito é proporcionar uma educação escolar indígena diferenciada, com currículos que representem as realidades indígenas nos aspectos políticos, societários e epistemológicos.

As estratégias decoloniais presentes nas pesquisas interagem com os conhecimentos ocidentais, promovem uma coexistência sem hierarquia, numa relação de complementaridade, mostram "como elas se relacionam a outros saberes, como, por exemplo, o saber histórico" (Nazareno, 2017, p. 1). As pesquisas refletem os processos de aprendizagem indígenas e são produzidas pelos próprios professores indígenas, apresentam suas visões cosmológicas e históricas. Isso permite pensar o manejo da história indígena por meio de uma “interculturalidade crítica” que considera a diversidade de possibilidades de atribuições recíprocas entre as pessoas em contato.

Não pretendemos propor soluções universais para o ensino de história indígena. Devido à diversidade dos povos indígenas, seria inadequado elaborar uma abordagem única. Buscamos mostrar, a partir das pesquisas dos professores-pesquisadores Javaé, que as práticas na Educação Intercultural Indígena, como no NTFSI, apontam caminhos pela interculturalidade crítica, criam espaços de interação pluriepistemológicos e trazem à tona formas de conhecimento histórico, linguístico e outros que foram historicamente negligenciados e subalternizados.

A história e o ensino de história devem considerar os povos originários como participantes ativos dessa história, e não apenas como coadjuvantes. Grande parte dos relatos historiográficos sobre o contato entre europeus e indígenas brasileiros contam apenas as versões ocidentais. Raramente encontramos narrativas historiográficas elaboradas pelos próprios indígenas sobre o que esse contato representou para eles.

Propomos criar um material didático para professores da educação básica, estabelecer um diálogo intercultural baseado nas dimensões de tempo e história dos Javaé. Inspirado nas pesquisas dos professores indígenas, este recurso busca capacitar os professores não indígenas a integrar os saberes originários em suas práticas educacionais de forma significativa.

A necessidade de reterritorializar o ensino de história emerge da constatação de que os modelos tradicionais não atendem às especificidades dos povos indígenas. É preciso adotar uma perspectiva inclusiva que reconheça o protagonismo e a autoria intelectual dos originários dessa terra na construção de suas próprias histórias.

Portanto, o material proposto visa catalisar um movimento mais amplo de reconhecimento e respeito pelos saberes indígenas. Fornecer ferramentas e promover um diálogo horizontal entre diferentes formas de conhecimento, espera-se que os professores transformem suas práticas pedagógicas, contribuam para uma educação mais justa, inclusiva e reflexiva. Essa iniciativa valoriza a pluralidade cultural e epistemológica do Brasil e fortalece os laços de entendimento e respeito mútuo entre as comunidades indígenas e não indígenas. Ao implementar essas mudanças, esperamos enriquecer o currículo escolar e celebrar a riqueza dos saberes originários em suas múltiplas manifestações.